Texto: Como José da Silva descobriu que anjo da guarda existe

COMO JOSÉ DA SILVA DESCOBRIU QUE ANJO DA GUARDA EXISTE
Augusto Boal
(Adaptação de Wilson Coêlho)

MULHER – José, acorda, está na hora. Parece até filho de burguês: passa a  vida na cama.

JOSÉ – Deixa eu dormir mais um pouquinho hoje. Estou desempregado.

MULHER – Por isso mesmo. Acorda e vai procurar emprego.

JOSÉ – (Resmungando) – Ainda é madrugada.

MULHER – Qual nada! O dia já anda longe

JOSÉ – (Resmungos)

MULHER – (Insistindo) – Acorda, homem, e vai procurar emprego. Põe o terno mais bonito.

JOSÉ – Que terno mulher, ficou louca?

MULHER – Tá bom! Põe a roupa mais bonita. Tem sabonete no banheiro.

JOSÉ – Acende essa luz que eu não enxergo nada. Hei, quem é esse cara?

ANJO – (Com sotaque carregado) – O Anjo da Guarda.

JOSÉ – Que bom você veio, cara! Imagina que ontem perdi o meu emprego.  Quem sabe se nós dois juntos, a gente não acha outro melhor?! Aliás, eu sempre achei que esse mundo materialista, que não acredita em Anjo da Guarda, está muito errado. Vá, se arruma logo e vamos procurar emprego pra mim.

ANJO – (Sempre com sotaque de gringo) – Agora não posso. Estou ocupado.

JOSÉ – Que é isso Anjo, se você é meu anjo da guarda, tem que me ajudar. Vou te botar pra trabalhar. Anjo da Guarda meu tem que dar duro.

ANJO – Sou Anjo da Guarda sim, mas não o seu. E estou aqui trabalhando.

JOSÉ – Então trabalha, vamos nessa.

ANJO – (Estendendo a mão) – Paga!

JOSÉ – O quê? Não comprei nada.

ANJO – Você acendeu a luz.

JOSÉ – E daí, estou na minha casa.

ANJO – Sou o Anjo da Guarda da Phillips.

JOSÉ – E o que é que eu tenho com isso?

ANJO – Paga o royalty.

JOSÉ – Rói o quê?

ANJO – Royalty, seu burro, é uma taxa que você paga por tudo que usa de uma multinacional.

JOSÉ – Mais essa. Toma lá, mas pode ir andando que eu não preciso de Anjo que, em vez de me dar uma mãozinha, fica me enchendo o saco. (Paga e entra no banheiro, em mímica) – O que é que você está esperando?

ANJO – Receber, senhor!

JOSÉ – E o dinheiro que eu já lhe dei?

ANJO – Foi para a Phillips. Mas o que é isso na sua mão?

JOSÉ – Pasta de dentes.

Anjo – Então, sou o Anjo da Guarda da Colgate do Brasil. Paga e não bufa.

JOSÉ – Toma! (Faz ruído e gestos de quem dá descarga).

ANJO – Vai lavar as mãos com sabonete? Não se esqueça que eu sou também  o Anjo da Guarda da Gessy Lever Sociedade Anônima. (José paga).

JOSÉ – Agora vou tomar café…

ANJO – Então, paga!

JOSÉ – Agora você se estrepou e não me venha com histórias. Café é feito aqui mesmo e na sua terra não dá café.

ANJO – Feito aqui, mas é controlado pela American Coffee Company. Paga!

JOSÉ – Não vou pagar coisíssima nenhuma. Desisti de tomar café. (Falando para si mesmo) – Pô, tenho que arranjar emprego, mas nessa altura, não posso tomar um ônibus, que é da Mercedes Benz, nem taxi, que da Ford, da Chevrolet… Sei lá! Vou é a pé mesmo.

ANJO – Então, paga!

JOSÉ – Eu já não disse que vou a pé?

ANJO – Mas a sola do seu calçado é da Goodyear.

JOSÉ – Droga, bem que eu queria comer uma feijoada em lata, mas não quero pagar esse tal de rói… como é mesmo o nome?

ANJO – Royalty.

JOSÉ – É isso aí, não quero pagar royalty à Wilson Swift, Armour, Anglo… já sei: vou ver um far-west. Toma! (Liga a televisão e respira fundo) – Ah, tá fresquinho aqui dentro. (Anjo estende a mão) – Eu já paguei!

ANJO – O que é que você está fazendo agora?

JOSÉ – Nada, eu só estou respirando.

ANJO – Respirando o ar assoprado pelo ventilador da Wallita.

JOSÉ – Você não me dá uma folga, héim Anjo?! Acabou o dinheiro, (tira a camisa) – toma minha camisa. Não me larga um instante; se eu for pra casa de condução, pago. Sem compro um jornal, o fotolito é importado, se leio um livro o papel é da Aracruz Celulose, se subo num elevador, a marca é Otis, Schindler, sei lá…

ANJO – Esqueci de dizer que sua calça é de linho…

JOSÉ – E daí?

ANJO – … irlandês.

JOSÉ – (Entregando-lhe as calças) – Só falta eu me matar. (Põe o revólver  no ouvido).

ANJO – (Desesperado) – Não, isso não, pelo amor de Deus, não faça isso!  José da Silva, não se mate! Não! (Chora)

JOSÉ – (Comovido) – Pelo menos você tem coração. Não quer me ver morto.

ANJO – (Pegando o revólver) – Não é isso, pode se matar a vontade, mas  antes não se esqueça de pagar royalties para a Shmit & Wesson, fabricante de armas desde 1837. (Leva o revólver e voltando-se para trás, diz:) – Agora, pode morrer. (José dá gargalhadas.)

MULHER – (Entra assim que o Anjo sai) – Está rindo de quê?

JOSÉ – (Continua gargalhando)

MULHER – É por isso que agente vive nessa miséria. Eles lhe roubam até as  calças e ainda por cima você acha graça?

JOSÉ – (Como se lhe contasse um segredo) – Nós enganamos ele, mulher.

MULHER – Enganamos o quê? Ele é quem nos roubou.

JOSÉ – (Falando baixinho) – Imagina se ele descobre que meu calção é de nylon. Eu acabava nu… (rindo).

CAI O PANO